Doação de órgãos
Rotary Portugal D1970

É altura de considerar a doação de órgãos

Por Neil Steinberg

Com mudanças nos transplantes à vista, membros do Rotary impulsionam o fim da escassez global de órgãos

Anil Srivatsa conduz uma carrinha cheia de autocolantes e slogans por toda a Índia numa missão quixotesca: esclarecer o maior número possível dos 1,4 mil milhões de habitantes do país acerca da importância da doação de órgãos.

É um homem no seu camião, muitas vezes acompanhado pela esposa, a percorrer cidade após cidade durante várias semanas por ano, a tentar aumentar a taxa de doação de órgãos na Índia, um dos países com piores indicadores nesse aspeto. “Há um profundo preconceito cultural contra a doação de órgãos na Índia”, afirma Srivatsa, um empresário de media que ajudou a fundar o Rotary Club de Doação de Órgãos (Rotary Club of Organ Donation) em 2022. “Há muito trabalho a fazer nesta área para combater a desinformação e o medo.”

Anil Srivatsa, que partilha a sua história como doador de rim para fazer com que as pessoas se sintam mais à vontade para doar, está a impulsionar os membros do Rotary a novos níveis de defesa da doação de órgãos.
Crédito da imagem: Gayatri Ganju

Para Srivatsa, a missão é profundamente pessoal. Há dez anos, doou o seu rim esquerdo ao irmão, Arjun Srivatsa, neurocirurgião e membro do Rotary Club de Bangalore, que sofria de insuficiência renal crónica. Nas suas viagens, Srivatsa dorme numa tenda que se abre no topo da carrinha. Um dos autocolantes diz: “Os doadores de rins são sexy!” Quando há um Rotary Club na cidade, faz apresentações – são mais de 4000 clubes no país – ou então, fala perante os residentes que consegue juntar.

A Índia está atrás de grande parte do mundo na doação de órgãos por várias razões, algumas vezes complicadas, incluindo a simples falta de informação, hospitais de cuidados de transplante inadequados e em áreas rurais, e a desconfiança das famílias dos potenciais doadores sobre o uso dos órgãos. No entanto, estão a decorrer grandes mudanças na regulamentação e incentivo à doação na Índia e noutros países, o que tem destacado nos últimos anos este tema. Isso inclui a atenção dada a experiências norte-americanas e chinesas com o transplante de órgãos de porcos geneticamente modificados para humanos, bem como a uma lei dos EUA de 2023, que tenciona revolucionar o sistema nacional de doação, numa tentativa de contrariar um monopólio ineficiente e reduzir a escassez de órgãos.

Educação e acesso

Há vários anos que os membros do Rotary têm tido um papel de destaque na expansão do acesso a cirurgias renais e hepáticas, bem como na coordenação de formação em transplantes para equipas médicas. Um dos exemplos inclui um projeto liderado por clubes no Distrito 3640, na Coreia do Sul, para formar cirurgiões no Myanmar e na Mongólia em técnicas avançadas de transplante de órgãos de pessoas falecidas, uma fonte de órgãos que está a crescer, mas ainda aquém do seu potencial para salvar vidas.

Com caminhadas, campanhas nas redes sociais, e, mais recentemente, um chatbot que responde a perguntas sobre doação de órgãos, os membros do Rotary contribuem para um movimento que educa as pessoas acerca da importância de doar os seus órgãos e tecidos – seja após a morte ou em vida, como um rim ou parte do fígado.

Os clubes Rotary e Interact na Índia, onde os membros ajudaram a eliminar algumas restrições à doação de órgãos, estão particularmente ativos na promoção desta causa. Esclarecem as pessoas através de oradores especializados em reuniões dos clubes. (Cortesia de Anil Srivatsa)

Na Índia, os desafios são representados pelas próprias leis. Até recentemente, os cidadãos de alguns estados só podiam registar-se para receber um transplante de um doador falecido no seu estado de origem. Com a ajuda de outros rotários, Srivatsa desafiou esse requisito estão a ocorrer através da organização não governamental que formou para coordenar o apoio internacional ao seu trabalho, a Gift of Life Adventure Foundation.

No Reino Unido, em vez de se confiar que as pessoas se inscrevam, a lei recente considera a maioria dos adultos como potenciais doadores de órgãos após a morte, a menos que optem por não o ser. Em 2021, o Rotary Club de Leicester Novus, Inglaterra, recebeu um orador para explicar a lei.

A causa conta frequentemente com o apoio de rotários conhecidos, como a ex-presidente do Rotary International Jennifer Jones. (Cortesia de Anil Srivatsa)

Há mais de 20 anos, no México, as pessoas recebem ajuda para pagar transplantes de rim através de uma iniciativa do Rotary Club de Cuajimalpa. O projecto é apoiado por uma organização sem fins lucrativos no país, outros clubes mexicanos do Distrito 4170 e clubes dos EUA nas zonas 30 e 31, uma parte do Centro-Oeste. Tal como em muitas outras partes do mundo, o México tem visto um aumento nas doenças renais crónicas, à medida que as duas principais causas, diabetes e hipertensão arterial, também aumentam. Embora os transplantes de rim estejam a aumentar, o seu elevado custo impede que muitos mexicanos os possam pagar. Os rotários têm utilizado múltiplas subvenções globais para o projeto, de forma a poder orientar doadores e recetores ao longo de todo o processo até à cirurgia. Dissipam assim os receios sobre a saúde dos doadores, de uma forma semelhante ao trabalho de Srivatsa nas suas viagens pela Índia.

Caminhada que contou com a participação de muitos estudantes do ensino secundário. (Cortesia de Anil Srivatsa)

Os clubes na Índia têm sido particularmente ativos na promoção do tema, com sessões educativas para trabalhadores de fábricas e estudantes universitários, marchas de pessoas com faixas e bandeiras a caminhar pelas ruas das cidades, e eventos para incentivar as pessoas a prometerem doar os seus órgãos quando morrerem.

Srivatsa, que divide o seu tempo entre Bengaluru (anteriormente Bangalore) e New Jersey, EUA, também fez campanhas para desmistificar o transplante em toda a Ásia, Austrália, Europa e Américas. Percorre o globo para falar com grupos empresariais – em Dezembro, foi a Bali para falar com executivos da Pepsi. Estima que já tenha falado com mais de 270 mil pessoas em 58 países, em mais de 1000 ocasiões, muitas delas em clubes Rotary. “O amor é obstruído pelo medo, e acredito que o medo vem de perguntas sem resposta”, diz Srivatsa. “O que tento fazer é responder a essas perguntas. Não digo às pessoas que se tornem doadores de órgãos. Isso é uma decisão que podem tomar quando perceberem que o medo é infundado.”

Anil Srivatsa afirma que a doação do seu rim ao irmão, Arjun Srivatsa, não foi um sacrifício. (Crédito da imagem: Gayatri Ganju)

Srivatsa ajudou a criar o Interact Club of Venky Yoda, que visa sensibilizar os jovens para a doação de órgãos, na Venkateshwar International School, em Deli. Os interactistas trabalharam com o seu clube para lançar recentemente um chatbot que esclarece as pessoas acerca da doação de órgãos. Srivatsa, que ajudou a formar outros dois clubes, também trabalhou com o Grupo Rotary em Ação para a Doação de Sangue (Rotary Action Group for Blood Donation) para adicionar a doação de órgãos à missão do grupo (e ao seu nome), o que aumentou o foco dos membros do Rotary no tema. O grupo já conta com centenas de membros dedicados ao apoio a campanhas de doação de sangue, e a expansão para incluir defensores da doação de órgãos será uma força poderosa.

Os irmãos Srivatsa demonstram uma vida saudável após o transplante com extenuantes percursos de bicicleta de montanha e outros desafios físicos. (Cortesia de Anil Srivatsa)

Srivatsa utiliza a sua experiência de ter dado um rim ao irmão para demonstrar que os doadores vivem vidas normais e saudáveis. “Quando as pessoas dizem que sacrifiquei muito ao dar um rim ao meu irmão, não acredito que tenha sido um sacrifício”, diz. Para demonstrar quão ativa pode ser a vida após o transplante, os irmãos participaram numa exigente viagem de bicicleta de montanha em 2015, seis meses após as operações. Competiram nos Jogos Mundiais para Transplantados em Inglaterra, em 2019, e na Austrália, em 2023, com medalhas para Arjun no golfe e para Anil no lançamento de bola de críquete e na marcha.

Remover obstáculos

Apesar dos esforços de base dos membros do Rotary, a Organização Mundial da Saúde estima que os transplantes cobrem apenas cerca de 10% das necessidades. Muitas pessoas à espera de rins sobrevivem apenas através do processo debilitante de diálise, onde o sangue é filtrado por uma máquina para remover toxinas que normalmente seriam eliminadas por rins saudáveis (leia o ensaio do autor acerca da ajuda ao seu primo em diálise e da tentativa de lhe doar um rim, em inglês). Mas a diálise não está disponível em todos os lugares ou é demasiado cara para muitas pessoas. Na Índia e em muitos países, o uso de órgãos doados por pessoas falecidas é ínfimo, sendo os transplantes principalmente limitados a rins de doadores vivos.

Membros do Rotary com ligação pessoal ao tema incluem Prashant e Hemali Ajmera, um casal na Índia que enfrentou o obstáculo legal de exigir um certificado de residência no estado de Gujarat, onde Hemali fazia diálise e precisava de um transplante de rim.

Ambos cidadãos canadianos, souberam do requisito na primavera de 2022, quando Prashant foi a um hospital de Gujarat para registar a esposa para receber um rim de um doador falecido. “Fiz a aplicação, e em quatro dias recebi a resposta do departamento de polícia: A sua esposa é cidadã canadiana, portanto não tem direito a um certificado de residência no estado de Gujarat. O hospital não a aceitara como paciente.”

“Como advogado, isso não fazia sentido para mim”, diz Ajmera, membro do Rotary Club de Ahmedabad Metro. Investigou e descobriu que os requisitos de residência eram um grande obstáculo para a taxa de transplantes em todo o país. Uma petição judicial de Hemali teve sucesso, e o requisito de residência em Gujarat foi considerado inconstitucional no final de 2022. A ONG de Srivatsa avançou com uma ação ao Supremo Tribunal da Índia. “Usámos a fundação de Anil para entrar com uma ação colectiva”, diz Prashant Ajmera. “Tudo aconteceu por causa do Rotary.”

Em Março de 2023, o governo federal adotou uma política que proíbe requisitos de domicílio para aqueles que procuram transplantes de doadores falecidos, além de levantar a proibição de pessoas com mais de 65 anos de receberem transplantes. “Houve médicos que vieram ter comigo e disseram que esse era o grande obstáculo, e que finalmente fora removido, eliminando-se assim uma complicação no processo”, diz Ajmera, que fala aos Rotary Clubs sobre as complexidades das regras de doação de órgãos na Índia.

Srivatsa passa semanas na estrada com a sua carrinha a visitar Rotary Clubs e outras pessoas que consegue reunir, para combater a hesitação sobre a doação de órgãos. (Crédito da imagem: Gayatri Ganju)

No entanto, antes que a batalha legal fosse resolvida, a condição de Hemali piorou, forçando-a a receber um rim de um doador vivo – a sua irmã. A operação foi realizada em Fevereiro de 2023, num hospital recomendado por um médico rotário, e Hemali mudou-se mais tarde para o Rotary Club de Doação de Órgãos. “O Rotary ajudou-me toda a minha vida, ligação após ligação, médico após médico, tudo graças ao fantástico Rotary”, afirma Prashant Ajmera.

Para ajudar outros a considerar a doação, a fundação de Srivatsa publicou um livro, A Rotarian’s Guide to Organ Donation, editado por Hemali Ajmera.

Prashant Ajmera defende que os membros do Rotary possam desempenhar um papel mais amplo na promoção da doação de órgãos. Ninguém espera que o progresso seja fácil, mas os membros estão comprometidos com o longo prazo.

Srivatsa afirma que os membros, espalhados por comunidades em todo o mundo, estão numa posição forte para promover mudanças sistémicas que melhorem a doação de órgãos e alertem as pessoas sobre como prevenir condições, como doenças cardíacas e diabetes, que possam levar à falência de órgãos. “Passar por aqui, fazer um discurso apaixonado e depois ir embora não é o ideal. Precisamos de alguém no terreno, sempre lá, a impulsionar a agenda.”

Esta é uma versão abreviada de uma história publicada originalmente na edição de agosto de 2024 da revista Rotary,

Traduzido de It’s time to consider organ donation, Rotary International