A libertação de Julie Mulligan
Depois de ser raptada no estrangeiro, a rotária Julie Mulligan decidiu viver uma vida mais autêntica e dar mais de si antes de pensar em si
Por Kate Silver
Fotografia de Taylor Roades
Um homem dormita no seu quarto. É cerca de meia-noite, o silêncio é interrompido apenas pelo som suave da televisão. O telefone toca, e acorda-o abruptamente.
“John?”
“Julie? O que aconteceu?”
“Não ouviste?”
“Ouvi o quê?”
“John. Fui raptada.”
Julie começa a chorar. Em seguida, a voz de um homem surge no telefone. De forma brusca, exige 100 milhões de nairas — cerca de 700 mil dólares americanos — pelo regresso de Julie em segurança.
“Voltaremos a ligar”, diz o homem.
E desliga.
Quase 16 anos se passaram desde esse telefonema do norte da Nigéria para uma casa em Drayton Valley, uma pequena cidade aninhada entre dois rios na região central de Alberta, Canadá.. Julie Mulligan refletiu muitas vezes sobre os eventos de abril de 2009. Como esses eventos mudaram a sua vida e a da sua família. Como continuam a despertar emoções complexas. Como proporcionaram uma compreensão mais profunda sobre a natureza do perdão e das nossas interligações.
“Sou Julie Mulligan. Fui raptada. Estou retida num qualquer lugar da Nigéria. Não me sinto bem e provavelmente estou com malária. Os raptores estão comigo. Preciso de informações de contacto de membros do Rotary.”
Hoje, Julie e o seu marido, John, vivem na Colúmbia Britânica, onde continuam membros dedicados do Rotary. Julie já conseguiu entender o que lhe aconteceu, e, embora dolorosa, esta experiência foi quase uma dádiva que lhe abriu o caminho para ver a bondade nas pessoas em vez do mal.
JULIE:
A viagem para a Nigéria deveria ser uma oportunidade única de intercâmbio profissional e cultural para as cinco mulheres que viajavam juntas. Foram aceites para um programa de Intercâmbio de Grupos de Estudo através do Rotary. Durante um mês, esperavam explorar diferentes cidades, visitar repartições governamentais e locais culturais e passar tempo em locais de trabalho enquanto viviam com anfitriões rotários. Planeavam também criar laços com uma equipa nigeriana, cujos membros mais tarde hospedariam no Canadá como parte do intercâmbio.
A liderar a equipa canadiana estava Julie Mulligan, presidente do Rotary Club de Drayton Valley. Aos 44 anos, Julie era esbelta, com olhos verdes carinhosos, cabelo castanho e um espírito rápido e mordaz. Era a mais velha do grupo, que incluía quatro outros profissionais nos seus 20 e 30 anos, e era a única membro do Rotary.
Julie, que trabalhava no setor de seguros, estava eufórica. Adorou o tempo que passou em África no ano anterior, quando ela e John pedalaram por partes da Tanzânia. Mal podia esperar para voltar. Membro do Rotary desde 2001, estava especialmente entusiasmada por criar novos laços rotários em África.
Localizada no centro-norte da Nigéria, Kaduna é uma cidade movimentada e, por vezes, caótica, com cerca de 1,2 milhões de habitantes. Apesar de ser um importante centro industrial, a infraestrutura e os serviços da cidade não acompanhavam o crescimento. Os cortes de energia eram frequentes, e muitas pessoas não tinham acesso a água potável. Em todo o estado, também chamado Kaduna, cerca de 45% da população vivia abaixo da linha de pobreza nacional.
Atualmente, os raptos tornaram-se um negócio lucrativo e uma ameaça crescente em partes da Nigéria, incluindo o estado de Kaduna. Além de bandidos armados e organizações criminosas que utilizavam os raptos para financiar as suas operações, grupos militantes como o Boko Haram realizaram sequestros em massa por motivos ideológicos e para negociações com o governo. Em março de 2024, homens armados raptaram 287 crianças em idade escolar no estado de Kaduna.
Mas no início de 2009, isso não era comum. Naquela época, os raptos concentravam-se em torno dos campos petrolíferos do sul, no Delta do Níger. No norte, os visitantes eram recebidos de braços abertos. De facto, mostrar aos rotários visitantes a “verdadeira” Nigéria era algo que Leonard Igini sempre adorou fazer. Como membro do Rotary Club de Nassarawa-Kano, Igini acolheu visitantes da Noruega, Suécia, Japão, Canadá, EUA e outros lugares.
Igini estava entre os anfitriões da visita do grupo canadiano em 2009, com planos de liderar mais tarde a equipa nigeriana que visitaria o Canadá. “A palavra ‘risco’ não nos ocorria,” diz Igini sobre a equipa rotária local, “porque nunca tínhamos passado por isso.”
No dia 16 de abril, cerca de uma semana após o início da viagem, Julie e o seu anfitrião nigeriano, Moses Kadeer, membro do Rotary Club de Kaduna, regressavam de uma reunião do Rotary numa pousada, onde os membros do grupo de intercâmbio eram os convidados de honra. Ao chegarem à casa de Kadeer, um carro azul-petróleo estaciona ao lado. O condutor baixa a janela e faz uma pergunta a Kadeer — conhece fulano de tal? Quando Kadeer responde que não, três homens saltam do carro, arrastam-no do banco da frente e atiram-no ao chão.
Depois agarram Julie. “Moses!” grita enquanto a espancam com uma arma grande. Empurram-na para o banco traseiro e arrancam a toda velocidade.
JOHN:
John fica em choque após o telefonema com Julie. Normalmente, ele é uma voz calma e ponderada quando se trata da sua família, seja com Julie, os seus dois filhos adolescentes — Stephanie Dean, de 19 anos, e Mackenzie Dean, de 17 — ou os seus filhos adultos, Greg e Rob Mulligan. Mas esta era uma situação completamente desconhecida.
John acorda Steph e conta-lhe o que aconteceu. Em seguida, liga para os seus filhos e para os seus amigos de maior confiança, que também são rotários. Dentro de algumas horas, Alex e Gayleen Blais, Mary e Terry Drader, e Greg, filho de John, reúnem-se. Juntos, debatem o que fazer. Devem começar a reunir o resgate? Ligam para a polícia? Decidem pela segunda opção e, pela manhã, dois agentes da Real Polícia Montada do Canadá (RCMP) chegam à casa.
Os agentes informam John de que provavelmente os raptores voltarão a ligar em breve. Escrevem as palavras exatas que John deve dizer ao atender o telefone e avisam-no para não se desviar do guião. “Estavam receosos de que os raptores obtivessem mais informações sobre quem eu era, o que possuía, a que organizações pertencia, todo esse tipo de coisas,” explica John, “o que poderia levar a um aumento no valor do resgate.”
Os agentes apontam para uma cadeira no final da mesa e dizem a John que será ali que ele ficará até que a sua esposa seja libertada. E, sem rodeios, informam-no de que não pagarão o resgate. “O governo do Canadá não negocia com terroristas ou sequestradores,” afirma Peter Ryan, que estava à frente da unidade de resposta extraterritorial da RCMP em 2009.
Então, aguardam que o telefone toque.
JULIE:
À luz da manhã, Julie avalia a situação. Na noite anterior, ela e dois dos raptores foram deixados num local escuro e desolado em construção. Agora é claro que estão sentados dentro das paredes de uma casa inacabada, com pisos de terra batida e sem telhado. Olha para a sua roupa poeirenta — um blazer com detalhes intrincados nas mangas, calças pretas curtas e sapatos de salto alto — e lembra-se, com ironia, que usara a mesma roupa, não muito tempo antes, no hotel Beverly Wilshire para uma conferência de negócios. Agora, os seus braços e pernas estão cobertos de picadas de mosquito. E já não tem a medicação contra a malária.
“Têm 24 horas para depositar o dinheiro nesta conta. Se não o fizerem, talvez nunca mais ouçam de nós — ou de Julie — novamente.”
Julie começa a entender melhor a situação. O condutor — que voltou temporariamente e instruiu-a a ligar para John — parece ser o chefe. Os dois jovens que estão com ela obedecem às suas ordens. À luz do dia, parecem ter a idade dos seus filhos adolescentes. Enquanto lagartos e escorpiões passam perto, Julie começa a conversar com os raptores, falando-lhes sobre si mesma, sobre os seus filhos, a sua família. Mostra-lhes fotos tiradas com a sua câmara, na tentativa desesperada de fazê-los ver que ela tem valor.
Pergunta-lhes por que estão a fazer aquilo. O mais novo, que diz chamar-se Anthony, precisa de dinheiro para estudar. O mais velho, que se identifica como Oyo, simplesmente precisa de dinheiro, ponto final. “Eles tinham esta ideia de que na América do Norte — no Canadá — as ruas eram feitas de ouro,” diz Julie.
Tenta negociar com os dois, para conseguir que estivessem do seu lado. Oferece o seu anel de casamento, dizendo que ele poderia render-lhes mil dólares. “E se sairmos daqui, vendemos o anel e conseguem o dinheiro?” pergunta. Não aceitam a proposta, e então esconde o anel no soutien — juntamente com o cartão de memória da câmara fotográfica — para mantê-lo seguro.
Reconhecendo que Anthony e Oyo não são os mentores, mas provavelmente peões, Julie sente uma espécie de ligação maternal com eles. Anos mais tarde, referir-se-á aos dois jovens como “os rapazes”. E, à medida que a situação avança, Oyo começa a chamá-la de “Tia”.
JOHN:
Quando Julie telefona no dia seguinte, a voz dela é a salvação de John — ela está viva. Mas também é um tormento, pois ela está angustiada, com medo e impaciente, até mesmo zangada. Sob a vigilância cuidadosa dos negociadores da polícia, ele não pode dizer o que realmente deseja. “Tinha que manter a calma. Não podia mostrar emoção,” explica. “Não podia demonstrar o meu amor. Isso daria mais ânimo aos raptores.”
A casa está em total confinamento para evitar que a notícia se espalhe e coloque Julie em maior risco. As autoridades canadianas autorizam John a ter cinco casais na casa para apoiá-lo. Dia após dia, amigos rotários e familiares estão com ele, mesmo enquanto a tensão aumenta.
“Havia muita agitação, seguida de muito silêncio,” recorda Steph, filha de Julie. Juntamente com o irmão são retirados da escola e instruídos a não falar com ninguém. A casa parecia um submarino, isolada do mundo, diz. “Tudo era tão pesado.”
Para fugir àquela tensão, Steph e Mackenzie fazem longos passeios de carro. Ouvem música e ligam para o telemóvel da mãe. “Ia diretamente para o voicemail,” diz Steph. “Ligávamos e punhamos em altavoz só para ouvir a mensagem: ‘Olá, chegou à caixa de mensagens de Julie Mulligan.’”
DAVID ALEXANDER:
A chamada chega à sede do Rotary International em Evanston, Illinois, Estados Unidos. David Alexander, gestor da divisão de relações públicas do Rotary na altura, sente a adrenalina a subir enquanto atende a chamada. Perto dele, o Secretário Geral Ed Futa recebe instruções da RCMP noutra linha. Estão a tentar rastrear a chamada; manter Julie a falar, dizem os agentes.
Já passaram vários dias desde o rapto, e Alexander tem liderado uma equipa de resposta a crises no Rotary em contacto próximo com a RCMP e membros do Rotary em Drayton Valley. “Nunca tínhamos enfrentado algo deste género”, afirma Alexander, “e todos sentíamos uma enorme responsabilidade em fazer exatamente o que nos pediam.”
Estabilizando a voz, Alexander entra em ação durante a chamada com Julie e tenta de tudo para prolongar a conversa. Julie pede números de telefone de membros específicos do Rotary — presumivelmente para que os raptores possam pedir dinheiro — e Alexander atrapalha-se com uma série de perguntas. “Pode soletrar esse primeiro nome? Pode soletrar o apelido? Pode dizer-me de que clube rotário essa pessoa faz parte?”
A chamada termina após cerca de um minuto e meio — demasiado curta para ser rastreada. Em seguida, o telefone toca novamente. “Estamos a trabalhar nisso,” diz Alexander a Julie, enquanto faz mais perguntas. Quando Julie responde, parece frustrada, zangada. “Estou numa situação séria e preciso de ajuda,” grita. A chamada é interrompida. O telefone volta a tocar.
Depois da terceira ou quarta chamada, o silêncio instala-se. Alexander fica ali, assombrado e com medo por Julie. “Foi a meia hora mais difícil da minha vida profissional,” relembra. “Está gravada na minha memória.”
JULIE:
Por volta da quarta noite, o chefe ordena que Julie entre num carro e levam-na para uma casa apertada numa cidade próxima. Dentro estão duas novas pessoas: uma jovem bonita, que Julie vem a conhecer como Ann, e um homem ameaçador chamado Christian. Na sua mente, Julie passa a chamar esta casa de “a casa de dentro” e o local anterior, sem teto, de “a casa de fora.”
“John, quando vais voar para cá? Quando vens? O que está a acontecer com o dinheiro?”
O chefe leva-a para um pequeno quarto com grades nas janelas. Agora no seu próprio espaço, Julie começa a fazer planos. Quando Ann lhe traz o pequeno-almoço — uma bebida semelhante a Ovomaltine — Julie rouba a colher e esconde-a num buraco no colchão. Quando ninguém está a olhar, usa a colher para tentar escavar o cimento em torno das barras da janela.
Para manter a força, faz flexões de braço usando garrafas de água como pesos e, quando ninguém está atento, pratica arrancar o colchão da cama para bloquear a porta.
JOHN:
Há tantas coisas que John gostaria de dizer ao homem ao telefone. Gostaria de dizer que enviará o dinheiro. Gostaria de chorar e dizer à esposa o quanto todos sentem a falta dela. Gostaria de implorar que a enviassem para casa. Mas tem de seguir o guião. Pagar um resgate poderia colocar outros viajantes em risco. Além disso, não havia garantia de que o pagamento resultasse na libertação de Julie.
“Silêncio”, escreve um agente numa folha de papel. John olha-o com raiva, mas segue as ordens, não dando nada aos raptores. Está aterrorizado de que aquela seja a última chamada. “Chorei durante 24 horas”, admite.
JULIE:
Julie não consegue entender por que John não paga o resgate. Após mais de uma semana, os raptores reduziram o valor para cerca de 68.000 dólares. Não faz sentido que ela ainda esteja ali tanto tempo. Tem a certeza de que foi esquecida. Está convencida de que John voltou ao trabalho. Que todos voltaram às suas vidas. Sente-se abandonada e incrivelmente sozinha.
Os raptores estão cada vez mais agitados. As reservas de comida estão a acabar, e agora o arroz é a base da alimentação. Durante este tempo, chamadas começam a chegar à casa. É uma mulher local, a perguntar por Julie, e os raptores permitem que ela atenda a chamada. Dia após dia, a mulher liga para fazer as mesmas perguntas: Está a ser tratada bem? Como está a sua saúde? O que está a comer? Julie, acreditando que a mulher fosse de uma igreja ou de um clube rotário local, respondia sempre da mesma forma: “Acho que tenho malária. Não temos comida. Só quero ir para casa.”
Doze dias após o rapto, o telefone toca na casa de dentro. Julie ouve conversas abafadas. Excitação. Algo está a acontecer. Falam em recolher dinheiro. Mas nada acontece.
Na noite seguinte, há uma nova tensão no ar. Anthony, Oyo e Ann estão frenéticos. Dizem a Julie para ficar quieta. “Não abra a porta. Não abra as janelas. Não fale com ninguém.” E saem.
Julie descobre mais tarde que Christian foi preso. Fora recolher o resgate de uma mulher que ligava para a casa. A mulher era, na verdade, uma agente do Serviço de Segurança do Estado da Nigéria, e a entrega do resgate era uma armadilha. O cúmplice de Christian conseguiu escapar e avisou a casa de que tinham sido descobertos.
Sozinha na casa, Julie está em pânico. Não sabe o que está a acontecer. Então, Anthony e Oyo voltam para buscá-la. No escuro da noite, conduzem-na por uma estrada até uma aldeia. Enquanto pessoas passam e motos seguem pela rua, Julie tem medo de todos. Os rapazes continuam a falar freneticamente ao telefone. Então param e olham para Julie. “Tia, não nos siga”, diz Oyo. E fogem.
Julie permanece ali, na beira da estrada, no escuro, paralisada. Em poucos minutos, aproxima-se um agente da polícia. Inicialmente, Julie recua. Durante os 13 dias em que esteve cativa, os raptores alimentaram-na com mentiras, dizendo que todos estavam contra si. Mas, finalmente, cede. Começa a aceitar que o seu tormento chegara ao fim.
No dia seguinte, é levada para diferentes delegacias, onde conta o que aconteceu e identifica Christian. Por fim, acompanhada por um agente da RCMP que chegou logo após o seu resgate, embarca num avião e regressa a casa.
“Eu apaixonei-me por ti duas vezes. Quando caminhavas pelo corredor no dia do nosso casamento, e quando caminhavas pelo corredor no dia em que foste resgatada.”
JULIE E JOHN:
A libertação de Julie chega às notícias antes mesmo de John ser informado, e o seu telefone começa a tocar. Primeiro, há euforia. Mas apenas quando ouve a voz de Julie ao telefone, “Estou bem. Estou bem”, é que a realidade se instala. Após quase duas semanas como refém, a sua esposa está a caminho de casa.
Quando o avião de Julie aterra, John está à sua espera no corredor de acesso. É uma imagem que nunca esquecerá. “Vinha pelo corredor, e foi uma coisa fantástica”, recorda. “Ainda lhe digo que me apaixonei por ela duas vezes. Quando caminhou pelo corredor no dia do nosso casamento, e quando caminhou pelo corredor no dia em que foi resgatada.”
Julie, que não contraiu malária, regressa em boa saúde. Chegam a casa para encontrar a casa cheia de amigos e familiares num ambiente de celebração total. O alívio de estarem juntos novamente é indescritível. Contudo, para a família, há camadas de trauma sob a alegria.
No período imediato após o resgate, Julie luta com sentimentos de abandono; por vezes, tem ataques de pânico quando fica sozinha. John quer mantê-la por perto, tanto que fica à porta enquanto ela toma banho. Steph tem um colapso quando não consegue contactar a mãe por telefone. Mackenzie, dizem eles, ainda prefere não falar sobre o assunto.
Julie encontra conforto em partilhar a sua história. Viaja e visita clubes rotários para falar sobre a experiência e angariar fundos para ajudar mulheres na Nigéria que sofrem de uma condição chamada fístula obstétrica, uma lesão debilitante que pode ocorrer durante o parto. Apesar da sua experiência traumática, deixa claro que não tem arrependimentos. Um mês após o regresso, numa carta de agradecimento aos membros do Rotary, escreve: “Quero que os rotários saibam que ainda acredito que o programa de Intercâmbio de Grupos de Estudos é o melhor veículo para promover o entendimento cultural e a paz. É incomparável em encurtar a distância entre dois países.”
Para seu alívio, a equipa do Intercâmbio de Grupos de Estudo da Nigéria ainda viajará para o Canadá, embora a viagem seja adiada por alguns meses. Para Igini, a visita deixa uma impressão profunda. O Canadá é o primeiro lugar onde viu pessoas que nem sempre trancam as portas ou as janelas. Até hoje, conta aos seus filhos o que viu. “A humanidade é uma só,” diz-lhes. “Todos estavam em paz uns com os outros.”
PARTE II
Após uma experiência tão traumática, algumas pessoas poderiam perder-se. Julie pareceu encontrar-se. À medida que soube mais sobre as pessoas que lutaram por ela, ficou profundamente comovida com a bondade humana. Leu sobre milhares de pessoas que se reuniram em Kaduna para uma vigília à luz de velas enquanto era mantida refém. Na Austrália, estudantes e professores numa universidade oraram por si. Conheceu um bispo que organizou círculos de oração por si no México. “Havia todo este movimento em prol da paz,” diz. “O meu nome estava associado a isso, mas era algo muito mais profundo.”
“Não podia controlar o facto de ter sido raptada, mas podia controlar o que fazia a seguir. Não parou de viajar. Não deixou de sair pela porta da frente.”
Na sede do Rotary, os líderes seniores, até o secretário-geral, estiveram profundamente envolvidos durante toda a emergência, ao analisar atualizações da RCMP com a sua equipa de crise e a manter contacto com os rotários canadianos que apoiavam diretamente a família. Os seus esforços foram completados por membros da equipa do Rotary responsáveis por monitorizar a segurança global e ajudar em emergências.
Ao longo da vida, Julie participou em inúmeros projetos de serviço para ajudar os outros. Agora, encontrava-se no lado que recebia a bondade dos outros. Isso acendeu algo dentro de si, um desejo de fazer mais, de não se conter. “Quando foi libertada, pensei que as nossas viagens tinham terminado,” diz John. “E foi aí que as nossas viagens duplicaram.”
Após alguns meses, John e Julie viajaram para Cuba. No ano seguinte, fizeram uma viagem de bicicleta em grupo na China. Em 2012, angariaram fundos para construir uma escola no Nepal e viajaram para lá com o Rotary Club de Calgary West, caminhando até um acampamento-base no Monte Everest. E em 2013, Julie juntou-se a outros rotários na Índia para administrar vacinas a crianças contra a poliomielte.
Mas Julie também precisava que as pessoas a vissem como uma pessoa completa, uma humana complexa, alguém que era mais do que uma vítima de rapto. Viver numa cidade pequena tornou isso difícil. O lema de Drayton Valley é, literalmente, “Unindo-nos,” e todos fizeram exatamente isso enquanto Julie esteve refém. Mas na era “depois,” Julie lutava com essa identidade. Na fila do supermercado, estranhos elogiavam-na por ser tão corajosa. No seu trabalho como consultora financeira, o véu entre o profissional e o pessoal parecia permanentemente removido. Julie tentou terapia.
Na maioria das vezes, encontrou-se numa busca pela autenticidade. Mergulhou no yoga, uma prática que antes desprezava, mas que aprendeu a valorizar pela concentração e força que exigia. Decidiu tornar-se instrutora de yoga. Em 2017, mudaram-se para a Colúmbia Britânica, para a deslumbrante cidade de West Kelowna, onde as montanhas e lagos ofereciam a promessa de aventura — e serenidade. Lá, a sua vida tornou-se plena e rica. Adora praticar paddleboarding pela manhã. Joga pickleball e dedica-se à jardinagem. Quando Julie e John não estão a viajar, estão a receber amigos e familiares. E encontraram outra família no Rotary Club de Kelowna.
É claro que tem cicatrizes emocionais. Há noites em que acorda sobressaltada e começa a falar, despertando John. Também é extremamente sensível ao sofrimento alheio. Uma vez, desabou a chorar depois de ver um motociclista ferido num acidente. Até mesmo cenas em filmes podem desencadear sentimentos de angústia e deixá-la em lágrimas. E não suporta ouvir a televisão em alto volume. Os raptores mantinham a televisão sempre ligada, num volume muito alto, na casa de dentro.
Mas outras coisas evocam associações mais positivas. Quando estava refém na casa de dentro, comia, de vez em quando, uma manga — uma mudança bem-vinda nas refeições regulares de arroz. Hoje, a fruta ocupa um lugar especial. “Quando mordo uma manga, sou transportada,” diz. “Há algo de esperançoso nisso, de uma maneira estranha.”
Talvez mais surpreendente seja o facto de pensar com carinho em Anthony e Oyo. Os dois rapazes não estavam entre as quatro pessoas presas pelo rapto, e Julie pergunta-se o que estarão a fazer agora. Lembra-se de como, mesmo nos piores momentos, quando não tinha certeza se iria viver, via a vulnerabilidade e a coragem dos rapazes e sabia que eram apenas jovens a fazer o que achavam necessário para sobreviver.
Julie tornou missão conhecer e agradecer aos agentes da polícia envolvidos no seu caso, viajando até à Jordânia, onde um deles estava baseado. Parecia que também queria mostrar-lhes que era mais do que Julie Mulligan, a vítima de rapto.
Peter Ryan, que se tornou superintendente-chefe da RCMP (e recentemente se reformou), recorda-se de um e-mail de Julie enviado quase 10 anos após o rapto. Julie e John estavam a viajar para Ottawa, onde Ryan estava sediado, e queriam saber se poderiam levá-lo, a ele e à sua esposa, para jantar. “A minha esposa, até hoje, ainda fala disso,” diz. De todos os casos de rapto que investigou, este foi o único que levou a um encontro pessoal.
Para Steph, ver a mãe seguir em frente é inspirador. “Coisas difíceis não precisam de te derrubar,” diz. “Ela não podia controlar o facto de ter sido raptada, mas pode controlar o que faz depois. Não parou de viajar. Não parou de sair de casa.”
Se perguntarmos, Julie dirá que foi a sua família que suportou o pior do trauma. Fora aqueles breves telefonemas, nunca sabiam se estava viva.
Para todos eles, tem sido uma longa recuperação. Mas, como Julie gosta de pensar, saíram mais fortes. “O rapto definitivamente mudou a minha vida. Mudou a vida da minha família, com certeza. Mas gosto de pensar que foi para o bem,” diz. “Sinto que a vida é um pouco mais doce quando sabemos quão rapidamente pode ser tirada.”
Este artigo foi originalmente publicado na edição de janeiro de 2025 da revista Rotary.
Traduzido de The liberation of Julie Mulligan, Rotary International